segunda-feira, 13 de outubro de 2008

OS DOIS LADOS DA VIDA

Ela saiu de casa com uma sensação estranha. E seu perfume ficou mais doce. Seus lábios mais vermelhos, sua roupa mais sexy. Não fumava, nem costumava beber. Mas hoje sentia paladar de álcool e uma vaga lembrança das antigas propagandas de cigarro. Deu um sorriso certeiro, olhou para o céu e agradeceu. Ao som de Folhetim, arrancou do volante e sentiu-se leve. “Chico Buarque devia ter sido mulher em outra reencarnação”, pensou incrédula.

Sempre saía sozinha, mas desta vez, esperava alguém. Detestava boates, mas se arriscou naqueles sons frenéticos, naquelas luzes fluorescentes. De longe viu o estranho e mesmo sem lhe transmitir uma palavra, já não era mais. Aproximou-se e ele sorriu, familiar. Foi beijá-la no rosto, mas ela o afastou e mostrou-lhe os dedos. “Temos que ficar de bem, fazer as pazes”, disse tímida. Ele a olhou como se já esperasse isso, tão típico. Ofereceu-lhe uma bebida e ela aceitou. Aceitou algumas rodadas, várias goladas, enquanto a música soava distante e só dava pra ouvir o barulho ensurdecedor da respiração dele. Gostava de estar agitada, suada, ofegante. De costa para o rapaz, era agora René Russo na dança sensual com Pierce Brosnan em Tomas Crown.

Sentia que podia segurar o mundo nas mãos. Ergueu os braços em volta do pescoço dele e insinuou seu corpo. Era um convite para sempre e para toda a noite. Minucioso, ele pôde reparar na tatuagem que enfeitava as costas nuas, provocante no vestido preto que trazia um generoso decote até o fim da coluna, tão sugestivo. Achava-a linda, sexy, nada tola. Queria sair dali com a garota. Pôs as mãos em sua cintura e dançou como ela queria, seguiu seu ritmo, ouviu sua música. Quando a virou, cravou seus olhos nos dela. Era um convite para sempre e para toda a noite. O corpo esguio enterneceu e ela derrubou a bebida de limão nos ombros dele e em seu próprio colo. Sentiu-se uma idiota e pediu desculpas. Sugeriu que fosse ao banheiro se lavar para não ficar grudado. Ele sacudiu a cabeça, tranqüilo. “Prefiro ficar assim e não perdê-la de vista”, atirou cínico.

Notou que as pontas dos cabelos dela também estavam molhadas. Olhou para os lados, inquieto, mordeu os lábios, cerrou os punhos. Precisava tirá-la dali. Com uma das mãos segurou forte sua cintura e com a outra, subiu pelas costas e apertou sua nuca, levantando-lhe os longos cabelos negros. Beijou-lhe como se fosse a última coisa que fazia na vida e a primeira. Os lábios dela tinham gosto de menta, de perigo. Ele adorava. Ela arregalou os olhos e o odiava por fazê-la se sentir tão estúpida. Quando o beijou, sentiu gosto de Hollywood e cheiro de Martíni. Imediatamente entendeu a sensação de outrora: "O gosto de álcool na minha boca, as propagandas de cigarro...", pensou.

Já eram quase 5 horas no lado escuro da vida. As pessoas iam embora da boate, as luzes se apagavam e a música cessava. Ele só sabia que precisava agir rápido e a levou para o camarim. Sem parar de beijá-la, ergueu-lhe no balcão sob o espelho. Relutante, podia ver os próprios gestos, ver em seu reflexo a loucura por aquela mulher. Apertou-lhe as coxas e desceu as alças do vestido, saboreando o delicioso gosto cítrico do colo pálido, úmido. Ela mordia os lábios e suspirava ofegante. Tirou a blusa do rapaz e limpou seu corpo com um pano molhado. Num movimento circular, fitava-o bem nos olhos. Sem medo, sem perdão, em silêncio. Depois o puxou para perto, arranhou-lhe as costas, mordeu os ombros, deixando-o louco. Apertou a nuca e o beijou muito forte. Estava disposta a dançar a música dele, mas em seu próprio ritmo.

E assim o céu se fez. E tudo que ele dizia, ela não ouvia. E tudo que ele fazia, ela não acreditava. Estava e não estava ali. Era e não era dele. Sempre e nunca. Entregou-lhe o corpo, deixou trancada a mente. Mordia, assoprava. Fez o moço confuso, desnorteado. E ele a supunha louca, palpável, efêmera, desejada.Também ele estava em transe, embriagado do tabaco, sóbrio da cerva. Sentia os olhos arderem, os lábios racharem, a garganta secar. Já era quase meio-dia no lado claro da vida. Ele abriu os olhos. O banco traseiro do carro cheirava familiar, mas ele não pôde reconhecer onde estava. Sentiu-se o coelho de Alice, sempre atrasado. Ou o cãozinho de Dorothy, sempre perdido. Fez um esforço pra entender a dor latejante, que parecia rasgar seus últimos neurônios. Fez das tripas coração pra voltar à noite anterior, onde estava a moça? Não dava mais. Já era meio-dia nos dois lados da vida.