quarta-feira, 13 de abril de 2011

MADALENA É



De Madalena, só tinha o nome. Não chorava, mal sorria, não sofria, não era santa, nunca passou fome. Às vezes, não usava pintura alguma e noutras, seus lábios eram de um carmim inconfundível. No corpo mignon trazia um vestido de chita tão sem graça, que era quase impossível diagnosticar de onde vinha aquele fogaréu dos olhos grandes e castanhos. 

Acordava de camisola, ficava assim a tarde inteira, olhando pro teto, caçando letrinhas. Depois organizava tudo na ‘cachola’. Quando resolvia levantar, era pra comer um miojo e depois contar, toda lamentosa, que só comeu miojo.  Seu apartamento parecia um museu: vitrolas, radiolas, vinis, máquina de escrever. Elvis, Marilyn, Janis, James Dean, todos juntos e envidraçados no longo corredor. Tinha 160 anos, mas parecia 22.

Madalena queria era ser professora só pra poder usar óculos como se fosse enfeite, como se fosse adjetivo, como se fosse a representação mais literal da sua inocência. Mas, de repente, lembrou que era viciada em palavrão e pornografia. E também em palavrinhas, neologismos e sotaques que saía falando a esmo, tão acima dos reles mortais, tão despretenciosamente acima da vãs inquietações humanas. Falava bem português, mas falava inglês sem saber verbos irregulares. Falava sobre política e futebol como se o presente fosse passado e vice-versa.

Madalena achava que o tempo não passava. Aí anotava tudo em papeizinhos miúdos, em letras criptográficas, pra passar a limpo depois. Anotava sentenças herméticas de batom nos espelhos de casa para não esquecer. Madalena esquecia de tudo que fazia hoje e seus pertences nos lugares que visitava. E não tinha pressa nunca. Quando chovia, andava devagar e chegava em casa ensopada.


Telefonava para o broto, estendida no chão frio. E dizia que trocaria de vida com o rapaz. Fácil. ‘A vida seria mais bela com um pinto no meio das coxas, né?’. Porque queria andar sozinha na rua de madrugada, porque queria arrancar a blusa quando seu time fizesse um gol, porque queria comer todas-as-menininhas-e-não-sair-falada, porque queria fazer xixi em pé. ‘Pô, seria massa!!’.

Madalena era sinesteta. Ia pra varanda, fumava um maço de cigarro e pensava em coisas brancas, pretas, azuis, vermelhas, amarelas. Sua vó era rosa com marrom. Sua mãe era lilás e o homem que mais amou na vida era azul com vermelho. Aliás, feio. Madalena achava muito bonito um homem muito feio. Sean Penn, Benicio Del Toro, Adrien Brody.   

Ia ao cinema sozinha esperar um príncipe encantado. Ia pra balada, bebia 3 mojitos, 2 tequilas e dava vexame modelo grande, ria à toa, falava alto. Estudou Ballet, não tinha vocação e desistiu, mas ainda trazia aquele típico ar blasé. Estudou teatro, até tinha algum talento, mas também desistiu. Ficou no jornalismo e tava sempre querendo desistir.

Remoía as perdas e traições no escuro da sacada, sem contar a ninguém. Amanhecia chorando, anoitecia dançando.  Manchava a blusa branca, expulsava o cheiro de Vanilla.

Adorava os filmes de terror e os de zumbi, mas tinha horror a gente morta, histórias de espírito, ladrão em casa, baratas e à sua própria ansiedade. Tinha dó do mendigo estendido no chão com um cachorro encardido. Aí ofereceu uma lata de sardinha ao pobre homem.

Madalena se fazia de tonta, de sonsa, de louca, de morta. Perambulava segredosa em todos os mundos, em todas as tribos.  Não era unanimidade, nem queria ser. Era toda madura naquela pretensão de quem nada ouve, nada fala, nada vê. Aliás, crer sem ver. Adorava o impossível e aquele cara que andava sob as águas, transformava água em vinho, multiplicava pães e peixes. E detestava as coisas ridiculamente possíveis, na palma da sua mão.

Sobre isso, comia uma fruta verde e não jantava, desejando infinitamente um Petit Gateu. Estranha era a vida sem Petit Gateu de graça nas praças, nas lanchonetes. Estranha era Madalena, pois.

Não sabia o que seria daqui a 10, 15 anos. Não gostava de não ter patrimônio, nem legado, nem segurança. Madalena já parecia quase 30 agora e sentia o peso daquela sociedade enredada nos costumes patriarcais, de que a esta altura, ela já devida ter tudo: Uma casa, um marido, um filho, um carro e um cachorro chamado Totó. Achou que o tempo se encarregaria de mandar essas coisas triviais. Talvez não fossem assim tão triviais como julgou.

Tinha quase 30 e não tinha nada além de olheiras.

4 comentários:

  1. Há um pedaço de Madalena em toda mulher, sabe? Pareceu uma cristalização da mulher urbana que ao mesmo tempo é toda particular, toda especial. Gostei muito. E claro que enxerguei você em cada pedacinho dela.

    E talvez a vida só comece depois dos 30...

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  2. Isa, muito foda, acho que o seu melhor post. Muito eu, eu diria, muito, muito eu.
    Beijinhos

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  3. Bruna,

    Que bom que meu texto serviu para tantas Madalenas! Que venham mais...

    Bjo, querida!

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No mais, manda ver!

Grata!