De
Madalena, só tinha o nome. Não chorava, mal sorria, não sofria, não era santa,
nunca passou fome. Às vezes, não usava pintura alguma e noutras, seus lábios
eram de um carmim inconfundível. No corpo mignon trazia um vestido de chita
tão sem graça, que era quase impossível diagnosticar de onde vinha aquele
fogaréu dos olhos grandes e castanhos.
Acordava
de camisola, ficava assim a tarde inteira, olhando pro teto, caçando letrinhas.
Depois organizava tudo na ‘cachola’. Quando resolvia levantar, era pra comer um
miojo e depois contar, toda lamentosa, que só comeu miojo. Seu apartamento parecia um museu: vitrolas,
radiolas, vinis, máquina de escrever. Elvis, Marilyn, Janis, James Dean, todos
juntos e envidraçados no longo corredor. Tinha 160 anos, mas parecia 22.
Madalena
queria era ser professora só pra poder usar óculos como se fosse enfeite, como
se fosse adjetivo, como se fosse a representação mais literal da sua inocência. Mas, de repente, lembrou que era viciada em palavrão e
pornografia. E também em palavrinhas, neologismos e sotaques que saía falando a esmo, tão acima dos reles mortais, tão
despretenciosamente acima da vãs inquietações humanas. Falava bem português,
mas falava inglês sem saber verbos irregulares. Falava sobre política e futebol
como se o presente fosse passado e vice-versa.
Madalena
achava que o tempo não passava. Aí anotava tudo em papeizinhos miúdos, em
letras criptográficas, pra passar a limpo depois. Anotava sentenças herméticas de batom nos espelhos de casa para não esquecer. Madalena esquecia de tudo que fazia hoje e seus pertences nos lugares que visitava. E não tinha pressa nunca. Quando chovia, andava devagar e
chegava em casa ensopada.
Telefonava
para o broto, estendida no chão frio. E dizia que trocaria de vida com o rapaz.
Fácil. ‘A vida seria mais bela com um pinto no meio das coxas, né?’. Porque
queria andar sozinha na rua de madrugada, porque queria arrancar a blusa quando
seu time fizesse um gol, porque queria comer
todas-as-menininhas-e-não-sair-falada, porque queria fazer xixi em pé. ‘Pô,
seria massa!!’.
Madalena
era sinesteta. Ia pra varanda, fumava um maço de cigarro e pensava em coisas
brancas, pretas, azuis, vermelhas, amarelas. Sua vó era rosa com marrom. Sua
mãe era lilás e o homem que mais amou na vida era azul com vermelho. Aliás, feio.
Madalena achava muito bonito um homem muito feio. Sean Penn, Benicio Del Toro, Adrien Brody.
Ia
ao cinema sozinha esperar um príncipe encantado. Ia pra balada, bebia 3
mojitos, 2 tequilas e dava vexame modelo grande, ria à toa, falava alto. Estudou Ballet, não
tinha vocação e desistiu, mas ainda trazia aquele típico ar blasé. Estudou
teatro, até tinha algum talento, mas também desistiu. Ficou no jornalismo e tava sempre querendo desistir.
Remoía as perdas e traições no escuro da sacada, sem contar a ninguém. Amanhecia chorando, anoitecia dançando. Manchava a blusa branca, expulsava o cheiro de Vanilla.
Remoía as perdas e traições no escuro da sacada, sem contar a ninguém. Amanhecia chorando, anoitecia dançando. Manchava a blusa branca, expulsava o cheiro de Vanilla.
Adorava
os filmes de terror e os de zumbi, mas tinha horror a gente morta, histórias de
espírito, ladrão em casa, baratas e à sua própria ansiedade. Tinha dó do mendigo estendido no chão com
um cachorro encardido. Aí ofereceu uma lata de sardinha ao pobre homem.
Madalena
se fazia de tonta, de sonsa, de louca, de morta. Perambulava segredosa em todos
os mundos, em todas as tribos. Não era
unanimidade, nem queria ser. Era toda madura naquela pretensão de quem nada
ouve, nada fala, nada vê. Aliás, crer sem ver. Adorava o impossível e aquele
cara que andava sob as águas, transformava água em vinho, multiplicava pães e
peixes. E detestava as coisas ridiculamente possíveis, na palma da sua mão.
Sobre
isso, comia uma fruta verde e não jantava, desejando infinitamente um Petit
Gateu. Estranha era a vida sem Petit Gateu de graça nas praças, nas
lanchonetes. Estranha era Madalena, pois.
Não
sabia o que seria daqui a 10, 15 anos. Não gostava de não ter patrimônio, nem
legado, nem segurança. Madalena já parecia quase 30 agora e sentia o peso
daquela sociedade enredada nos costumes patriarcais, de que a esta altura, ela
já devida ter tudo: Uma casa, um marido, um filho, um carro e um cachorro
chamado Totó. Achou que o tempo se encarregaria de mandar essas coisas
triviais. Talvez não fossem assim tão triviais como julgou.
Tinha quase 30 e não tinha nada além de olheiras.
Tinha quase 30 e não tinha nada além de olheiras.
Há um pedaço de Madalena em toda mulher, sabe? Pareceu uma cristalização da mulher urbana que ao mesmo tempo é toda particular, toda especial. Gostei muito. E claro que enxerguei você em cada pedacinho dela.
ResponderExcluirE talvez a vida só comece depois dos 30...
Amém, irmã! Deus te ouça...
ResponderExcluirIsa, muito foda, acho que o seu melhor post. Muito eu, eu diria, muito, muito eu.
ResponderExcluirBeijinhos
Bruna,
ResponderExcluirQue bom que meu texto serviu para tantas Madalenas! Que venham mais...
Bjo, querida!