Essa não é uma história de amor, mas bem que poderia ser.
Martin e Mariana eram absolutamente iguais o
bastante para serem completamente diferentes. Eram opostos que se
complementavam. Dois lados da mesma moeda. Nunca foram um casal, mas eram a cumplicidade do status quo.
Martin era vegetariano, Mariana destruía nos
rodízios de carne da cidade. Mariana era fatídica, noticiosa. Martin era
literário, poeta. Mariana odiava poesia porque entendia nada. Aliás, Mariana não entendia como Martin conseguia aprofundar até as coisas mais banais. Martin era Lars Von Trier, Mariana era Tarantino. Enquanto Martin era Da Vinci, Mariana era Dan Brown falando sobre Da Vinci. Blockbuster, óbvia, insegura. Mariana era sucesso de bilheteria, Martin um sucesso de crítica. Martin era uma
prova de algoritmo quando Mariana estava completamente bêbada. Seguro e leve.
Mariana sempre se perguntava como Martin podia passar por cima de tudo, como se
nada tivesse acontecido e começar do zero over and over again? Mariana ruminava
os rancores, Martin evaporava todos.
Martin morava com os pais, com os irmãos, os
cachorros. Mariana morava sozinha. Não em casa, na cidade. E quando o Martin
queria fugir de tudo, era pra casa da Mariana que ele ia. E quando Mariana queria fugir, fugia pra dentro de si. Martin fumava desde
os 17 anos. Mariana tentou 3 vezes na vida e nunca conseguiu. Mariana comprou
um cinzeiro pro Martin e lavou o terraço só pra vê-lo fumar, achava lindo vê-lo fumar.
Martin gostava da companhia dela enquanto fumava e contava umas histórias de
pescador, embora fosse o rapaz mais urbano que Mariana conhecesse. Por
urbanidade, Martin estava sempre conectado, gostava do jogo de palavras e de ideias. Ou apenas queria uma distância segura. Já Mariana queria se desconectar, gostava mais do jogo de pele e de cheiro e essas coisas todas.
Sobre isso, conheceram-se num desses aplicativos de
relacionamento. Mariana era veterana, Martin um marinheiro de primeira viagem. Como era
típico de Martin, conversaram uma semana antes de se conhecer e foram para um
bar. Mariana pediu um aperitivo de carne, enquanto Martin só observava a moça
comer, faminta. Como naquele filme em que Clark Gable observa Marilyn Monroe devorar uma coxa de frango na porta do boteco. Até hoje Mariana não sabe como Martin teve coragem de beijá-la
com aquele gosto de carne, cebola e alho. Aliás, Martin a beijou dentro do
banheiro masculino e passou a mão nas coxas dela! Mariana se assustou com a intensidade, mas gostou deveras. Foi o melhor beijo do mundo, apesar do gosto de
cigarro. Enfim, tava tudo misturado sempre.
Martin foi levar Mariana pra casa e percebeu que
havia acabado a bateria do celular. Mariana não sabia chegar em casa sem GPS e
seu celular também havia morrido. Martin levou 1h30 pra descobrir a casa da
Mariana, aventurando-se numas bocas que levavam a várias Romas. Madrugada
adentro, no caminho, entre um semáforo e outro, Mariana se inclinava pra
interromper e beijar o Martin. O beijo do Martin era tão bom, tão bom, que
Mariana era incapaz de ouvir o que ele tagarelava sobre a vida. E o sorriso do Martin também era
o mais bonito do mundo. Tudo em Martin, pra Mariana, era superlativo.
Quando chegaram, Martin pediu café, mas Mariana lhe
deu o melhor sexo que sabia fazer. Era ela ali o superlativo e era ali o único
momento gêmeo dos dois. Quando amanheceu, Mariana finalmente fez um café sem açúcar pro
Martin esperando que, em seguida, ele fosse embora, como todos os outros.
Martin quis ficar. Mais que isso: Martin quis ver um filme de 3 horas com a
Mariana e acabou ficando o resto do dia. Martin era um Titanic a bordo no meio
da cidade grande, não fazia ideia do seu tamanho, atracava em qualquer lugar. Mariana adorou, mas julgou que o rapaz fosse doido e que,
certamente, sumiria nas próximas semanas, como todos os outros.
Martin nunca sumiu, mas Mariana nunca conseguiu
confiar completamente nele. Era uma colcha de retalhos, uma Tulipa em um copo d'água, uma discípula fiel de Otelo. Tava sempre esperando que ele fosse embora, apesar da sua súplica
silenciosa, implorando que ele ficasse. Tudo que queria, no fundo, era apenas relaxar e se divertir.
Até que um dia, finalmente, Martin sumiu. E voltou,
como se nada tivesse acontecido. Mas antes disso, sumiu. E pra Mariana foi um
sumiço da vida, das vísceras, de tudo. Pra Mariana foi o cortar do cordão
umbilical, foi a borboleta virando lagarta e voltando pro casulo. Pra Mariana
foi o Martin comendo uma fulana de quatro, de lado, de ponta-cabeça, por
dentro, por fora, por trás, mesmo sem manchas de batom no colarinho. Foi o Martin sendo o Martin que ela sempre esperou
que fosse, como todos os outros, mesmo sem prova alguma.
E na sua loucura mórbida, na sua convalescência de Casmurro, Mariana fez sua dança sem par, seu luto sem cadáver. Na sua paranóia delirante, Mariana pensou que, pelo menos, ela sempre teve
razão.